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O experimento das escolas geridas por organizações sociais em São Paulo

Em breve, parceiros sem fins lucrativos istrarão três escolas públicas recém-construídas, sob metas de desempenho vinculantes

Evasão escolar: quase metade dos brasileiros não conclui o Ensino Médio (Patricia Monteiro/Bloomberg/Getty Images)

Evasão escolar: quase metade dos brasileiros não conclui o Ensino Médio (Patricia Monteiro/Bloomberg/Getty Images)

Rafael Leite
Rafael Leite

Colunista - Instituto Millenium

Publicado em 6 de junho de 2025 às 19h15.

Última atualização em 9 de junho de 2025 às 19h53.

São Paulo avança, nesta semana, com o que pode ser uma tentativa significativa de inovação na gestão escolar pública no Brasil. A prefeitura está prestes a lançar uma chamada pública para que Organizações Sociais (OS) assumam tanto a liderança pedagógica quanto a gestão de instalações em três escolas públicas recém-construídas (um piloto que deve se expandir para 50 unidades em uma rede que istra cerca de 1.500 escolas), sob acordos orientados por resultados, com expectativas de desempenho claras e vinculantes.

Para quem for menos familiarizado com modelos alternativos de gestão, as OS (Organizações Sociais) são entidades privadas sem fins lucrativos, financiadas com recursos estatais, que istram serviços públicos. O modelo de gestão baseia-se na autonomia em troca de resultados. No contexto escolar, essas entidades terão muito mais flexibilidade istrativa do que as escolas públicas tradicionais, mas prestarão contas pelo alcance dos resultados de aprendizagem dos estudantes. Esse modelo tem sido uma ferramenta-chave para a reforma das políticas educacionais nos Estados Unidos há décadas, com resultados mistos, que vão de histórias de sucesso a efeito médio nulo. O modelo também inspirou adaptações em outros lugares, como as academies no Reino Unido, as Collaboration Schools na África do Sul e os colegios en concesión na Colômbia. Como é evidente, ele assume muitas formas diferentes conforme o contexto.

Este é um grande avanço para a política educacional brasileira, embora seja importante esclarecer do que estamos falando. Não se trata de um modelo de “vouchers”, como entendido no contexto norte-americano. Os pais não poderão escolher enviar seus filhos para essas escolas — as matrículas continuarão seguindo o sistema padrão de alocação por residência em São Paulo. Em vez disso, trata-se, fundamentalmente, de uma forma de aumentar a eficiência operacional da educação municipal e de testar novos modelos de prestação de serviços públicos.

A governança por trás do experimento

No Brasil, as escolas públicas operam com autonomia gerencial muito limitada. Isso decorre, em parte, de um compromisso bem-intencionado com a equidade: a crença de que, para ser justo, a gestão de toda escola ou estudante deve seguir as mesmas regras e receber recursos equivalentes, independentemente do contexto. Ao mesmo tempo, há preocupação genuína de que dar muita discricionariedade aos diretores individuais possa abrir portas para o mau uso de recursos públicos. O efeito líquido é um sistema protegido por múltiplos controles procedimentais (destinados a garantir equidade e ability) que podem tornar até ajustes operacionais simples bastante burocráticos.

Uma lógica semelhante orienta o processo de contratação de professores. Em nossos concursos públicos, priorizamos a segurança jurídica em vez de avaliar prontidão para a sala de aula: os critérios são formulados de modo que, caso haja questionamento judicial, o governo possa explicar claramente por que o candidato A foi escolhido em vez de B. Essa ênfase faz sentido quando o objetivo principal é evitar processos, mas acaba fazendo com que percamos oportunidades de identificar e apoiar profissionais com a pedagogia e a paixão necessárias para ter sucesso em sala de aula. Sob essa ótica, a rigidez dos procedimentos não é apenas obstrução, mas também uma forma de proteger recursos públicos e garantir igualdade de condições — o que, por outro lado, cria barreiras à efetividade e à inovação.

Dadas essas limitações, muitos formuladores de políticas abordam propostas de governança alternativa, como as OS, com cautela. Não porque desconfiem da mudança, mas porque temem consequências não intencionais: uma escola mais autônoma poderia superar suas vizinhas, criando bolsões de desigualdade que colidiriam com nosso sistema público unificado. A pergunta que vale fazer, no entanto, é se permitir alguma variação gerenciada pode, na verdade, fortalecer o ecossistema como um todo. Será que uma rede escolar mais adaptativa e flexível — na qual práticas bem-sucedidas se espalham em vez de permanecer isoladas — pode entregar resultados mais equitativos? Isso nos traz ao modelo brasileiro de Organização Social (OS), nossa adaptação das quasi-autonomous non-governmental organizations do Reino Unido, ou quangos. Em vez de converter entidades públicas em semi-públicas, contratamos organizações da sociedade civil sem fins lucrativos para gerenciar serviços públicos por um período definido, mantendo a infraestrutura sob propriedade estatal. Já vimos esse mecanismo funcionar na saúde: hospitais e clínicas istrados por parceiros OS conseguiram responder mais rapidamente às necessidades locais, simplificar compras e vincular orçamento diretamente aos resultados (OCDE, 2021, p. 99). O resultado tem sido maior agilidade e, em muitos casos, melhoria na qualidade do serviço — enquanto infraestrutura e supervisão permanecem públicas.

Poderia a mesma abordagem ajudar a educação pública? Ao contratar organizações sem fins lucrativos experientes para istrar pedagogia e instalações, poderíamos preservar salvaguardas centrais de equidade - como um currículo comum, participação em avaliações públicas, issões inclusivas, marcadores compartilhados de identidade estudantil (como o uniforme escolar público padrão) e uma política rigorosa de gratuidade - ao mesmo tempo em que concedemos às escolas flexibilidade para responder aos seus próprios desafios. Não se trata de abandonar a equidade; é experimentar com um modelo que já entregou resultados positivos em outras áreas do setor público brasileiro. Assim, podemos testar se a autonomia gerenciada pode coexistir com nosso compromisso de manter uma rede escolar unificada e publicamente responsável - e aprender o que funciona, e para quem, sem arriscar uma fragmentação generalizada.

Por que este experimento importa

Alguns informes indicam que a prefeitura exigirá que as organizações parceiras utilizem os mesmos materiais didáticos adotados pelos demais alunos da rede pública, um sinal de preocupação das autoridades com fragmentação e equidade. Confesso certo ceticismo: embora um currículo comum e recursos idênticos facilitem avaliações conjuntas e comparabilidade, a verdadeira promessa está em conceder às escolas autonomia pedagógica de fato. Seria suficiente seguir livros e materiais uniformes para evitar disparidades, ou corre-se o risco de tornar essa autonomia apenas uma aparência? É justamente essa tensão entre coerência centralizada e inovação local que precisamos acompanhar de perto.

O sistema educacional brasileiro há muito tempo evita experimentos ousados de prestação de serviços, mesmo quando o setor de saúde abraça a colaboração público-privada. Contudo, pesquisas sobre modelos alternativos de gestão escolar nos lembram que a nova governança sozinha não é bala de prata: a implementação pode determinar sucesso ou fracasso. É justamente por isso que precisamos pilotar este modelo - para entender como o contexto local molda os resultados, em vez de assumir sucesso ou fracasso por procuração.

Na prática, o verdadeiro teste não está no contrato, mas na capacidade da cidade de atuar como compradora pública eficiente: selecionar fornecedores com critério, redigir termos claros e monitorar desempenho para fomentar melhorias, não apenas garantir conformidade. Como avaliar propostas sem experiência anterior? Como acompanhar o progresso visando a melhoria do ensino e da aprendizagem, em vez de apenas cumprir requisitos formais? Críticos podem apontar, com razão, que desenvolver esse músculo institucional de aquisições é uma tarefa monumental, mas essa competência só se constrói na prática. Sem pilotos dessa natureza, dificilmente saberemos se ampla autonomia gerencial e pedagógica são pilares de fortalecimento ou vetores de fragilização da nossa educação pública. Em essência, este piloto não deveria buscar demonstrar nada, mas reunir evidências. Será que um experimento controlado pode gerar melhoria sem fragmentar excessivamente o sistema? Apenas avaliação rigorosa e diálogo honesto dirão. Enquanto isso, organizações filantrópicas e governos locais devem colaborar em múltiplos pilotos, compartilhar lições e garantir que cada experimento nos aproxime de uma rede escolar pública mais responsiva e efetiva.

Entre riscos e possibilidades

Este piloto em São Paulo merece acompanhamento atento e avaliação rigorosa. O objetivo não é privatizar a educação nem criar um mercado educacional, mas aproveitar capacidade externa e inovação para aprimorar a oferta de serviços públicos. Se for bem-sucedido, poderá servir de modelo para introduzir práticas gerenciais inovadoras na educação pública brasileira, sem abrir mão do compromisso com o universal e equitativo.

Caso não obtenha êxito, extrairemos lições valiosas sobre os desafios de implementação em nosso contexto. De qualquer forma, já estava mais do que na hora de começarmos a experimentar. A política educacional brasileira tem sido excessivamente avessa ao risco, e nossos estudantes merecem mais do que um permanente incrementalismo

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